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Budismo: religião, filosofia ou psicologia?

- Por Marcia Fiker
O que realmente é possível saber de uma tradição que ora parece ser uma filosofia, ora uma religião, ora uma psicologia. Como entender o Budismo, afinal?

Nos dicionários, o Budismo é classificado como uma das maiores religiões do mundo, ao lado do Cristianismo, do Judaísmo e do Islamismo. Mas no Budismo não há um Deus, ente infinito, eterno, sobrenatural e existente por si só, causa necessária e fim último de tudo o que existe. Não há dogmas nos quais temos que acreditar. Ao contrário, encoraja-nos a não acreditar em nada que não passe pelo crivo de nossa própria lucidez e experiência. Por outro lado, ao visitarmos um templo budista, veremos pessoas fazendo reverências e prestando homenagens a representações e imagens de Buda, oferecendo-lhes velas, incensos, flores. E a tradição fala da importância da fé. O que entender dessas mensagens aparentemente contraditórias?
Embora o Budismo não corresponda exatamente à nossa idéia de religião, ele também não se classifica no que entendemos por filosofia. No pensamento ocidental, a idéia de que o “racional” e o “analítico” sejam diametralmente opostos ao “espiritual” e ao “intuitivo” data de centenas de anos e é o que marca o início da filosofia grega: a filosofia ocidental é a irrupção do logos no universo do mythos.  A linguagem desenvolve-se como poder de conhecimento racional, e as palavras, enquanto conceitos ou idéias, referem-se ao pensamento, à razão e à verdade. Ou seja, muda a maneira pela qual, através das palavras, os seres humanos organizam a realidade e a interpretam, e a filosofia aos poucos vai se separando da religião e do discurso religioso, fundamentado em dogmas não passíveis de crítica intelectual.
Foto: Namaskar Yoga, Adriana Vieira
No Budismo, pede-se que as pessoas investiguem e descubram os ensinamentos do Buda por si mesmas, antes de resolverem adotar a nova “fé”. O poder da lógica percorre a totalidade dos ensinamentos budistas, desde os ensinamentos mais simples, dirigidos aos leigos, até os mais profundos. O conhecimento exige incisivas análises filosóficas e a investigação crítica e racional de cada "verdade". Por outro lado, existem as noções de transcendência, de Verdade Última, do desenvolvimento do sentimento da compaixão, da noção da salvação de todos os seres, totalmente alheias ao discurso filosófico ocidental. O que concluir a partir desses dados?
Em relação à Psicologia, os psicólogos ocidentais têm nutrido, nas últimas décadas, muito interesse pelo budismo, que propõe um conhecimento da mente e de seu funcionamento.  Desde o século passado, novos modelos de entendimento da mente passaram a ser propostos, que buscam integrar as perspectivas ocidental e oriental da consciência, Por outro lado, alguns autores vêem o budismo e as técnicas de meditação budistas, em particular, como um novo tópico na longa lista de terapias disponíveis. 
O Budismo também entra em nossa cultura como mais uma modalidade terapêutica.  Na verdade, a tradição budista oferece-nos maneiras práticas e eficazes de mudar velhos hábitos mentais e comportamentos destrutivos. Mas o Budismo não é uma terapia, tal como entendemos este termo. O objetivo da meditação budista não é resolver problemas psicológicos, de dores ou estresse, embora isso possa acontecer (revelando um “efeito colateral” interessante das práticas de meditação). O objetivo real destas, na verdade, é abrir portas para estados de consciência que a psicologia ocidental tradicional nunca descreveu. 

Assim, a cosmovisão budista inclui o que poderíamos chamar, em nossa cultura, de religião; inclui, também, a análise filosófica, lógica e argumentativa, que poderíamos chamar de filosofia; e que, além disso, descreve um conhecimento sobre o funcionamento mental, propondo modelos e recursos efetivos de se trabalhar com a mente e atingir estados mais expansivos e saudáveis de ser, que poderíamos reconhecer como uma psicologia. Mas, de fato, essa cosmovisão se apresenta a nós como uma totalidade indivisível, que aborda o homem em todos os seus aspectos de modo concomitante.
O que ocorre é que essa cosmovisão nunca se “encaixará” exatamente no nosso modo de conceber, do mesmo modo que um círculo nunca se encaixa totalmente num quadrado, e isso acaba gerando toda sorte de mal-entendidos e equívocos fundamentais: os filósofos, por um lado, não aceitam totalmente o budismo como uma filosofia, dado o seu lado “transcendente” e “místico”; os representantes das religiões ocidentais não consideram o budismo como uma religião, propriamente dita: já que o Buda é um homem, nunca poderá ser comparado, em sua grandeza espiritual, a Jesus Cristo, filho de Deus.

A nosso ver, se o considerarmos a partir de um enfoque que compartimentaliza o conhecimento em disciplinas distintas, é grande o risco da chegada do Budismo no Ocidente, que é o de ele perder as suas especificidades culturais e conceituais e a riqueza de sua visão espiritual, passando a ser lido e interpretado de um modo equivocado e preconceituoso, sendo reduzido e empobrecido em suas premissas epistemológicas fundamentais, devido ao nosso inevitável viés cultural. 

(extraído da tese de mestrado ELEMENTOS PARA UM DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO TRILÍNGÜE INGLÊS-SÂNSCRITO-PORTUGUÊS DE CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE BUDISMO,
USP- Depto. De Lingüística da FFLCH, 2006), de Marcia Epstein Fiker

Saiba mais:
www.marciafiker.blogspot.com
www.centromandala.com.br

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